Manifesto pela Soberania de Dados
- tnicodemo
- 18 de jan. de 2023
- 6 min de leitura
Readquirir controle sobre os nossos dados é passo fundamental para o avanço do estado democrático

Excerto do afresco Saturno e Historia (1560), de Paolo Veronese, na Villa Barbaro, em Maser na Itália. Fonte: Wikimedia Commons, 2022.
Dados são indícios da existência, sendo inerentes, inscritos no plano da experiência, às pessoas, às cidadãs e cidadãos, que o produzem. Nesse sentido, o Estado aparece como a instância mediadora. Pensar, então, um manifesto pela soberania de dados implica imaginar um novo horizonte político que almeja um maior ganho de consciência de que as pessoas são, em última medida, responsáveis por suas informações.
A soberania traz consigo, ainda mais se pensarmos nas relações entre Estado e sociedade, um forte imperativo, qual seja, aquele que atravessa as decisões sobre a vida e sobre a morte das pessoas. Isso pode ser recobrado através da sua moderna acepção, em estado de gestação desde a passagem para o século XIX, em que se se estabeleceu os primeiros movimentos de um pacto soberano, passando o poder não mais, com escalas variadas de historicidade, emanar de Deus ou do monarca.
Em linhas gerais, o povo passa, então, a ceder o seu poder para a instância mediadora, o Estado. Ele se porta, em contrapartida, através das hostes da transparência e da boa governança. Isso à nível de moderna teoria política. Por isso uma das insígnias do Estado moderno não é outra do que o contrato social: cidadão-povo-Estado. É o momento em que os seres humanos transcendem, contextualmente, o estado de natureza, e isso implica a naturalização das normas e das instituições, e passa a avançar por caminhos de ativa legislação, em que pretende elaborar as suas leis, a sua moral, os seus costumes; informando institucionalmente o Estado que muda de polo, deixando de se movimentar verticalmente.

Rascunho do frontispício do livro Leviatã (1651), de Thomas Hobbes, ilustrado por Abraham Bosse. Fonte: Wikimedia Commons, 2022.
Os dados estão, nesse sentido, no cerne do problema da soberania no mundo contemporâneo. Pensando na perspectiva da longa duração, o que se assiste são as pessoas no gesto contínuo de ceder parte do seu corpo materializado em dados, concebidos como fragmentos de experiência, ao Estado. Doravante, em um processo de alienação crescente, impulsionado ainda mais pelo fenômeno da transferência de dados sob vetores digitais, em que não se possui o domínio adequado sobre as máquinas, sendo que elas podem, até mesmo, se portarem em modo agenciador sobre as pessoas devido ao poder da razão algorítmica.
Lidando, pois, com uma linguagem marxista: não seria outro fenômeno que não o da alienação, mas, agora, projetado para os ambientes do ciberespaço. O que está em questão, de forma sintética, é que no interior desse fenômeno não há mediação, até mesmo de caráter pedagógico, à respeito dos dados, de modo que as pessoas cada vez mais perdem a capacidade de (auto)governança sobre os mesmos, de armazenamento informacional, que, nesse movimento acabam sendo expropriados por outras instituições. Encontramos, aqui, uma das primeiras hipóteses sobre a necessidade do incentivo à soberania de dados, qual seja, essas instituições, conglomerados informacionais, estão, de algum modo, acima da legislação que tem o poder, pois, de decidir sobre a vida e a morte.
Temos, pois, uma importante questão de biopolítica. Aqui chamamos não de outra coisa do que inversão da biopolítica, que seria a ideia de que as pessoas não possuem limites, e poder decisório, sobre as ações dos seus próprios corpos biológicos. Essas bases de dados, as quais aludimos acima, parecem, de alguma forma, tornar a vida eterna. Se perde, em tons distópicos, o direito de esquecer e, até mesmo, de morrer. É o poder da emulação digital, sendo ele capaz de projetar corpos virtualizados, que nem por isso deixam de ser materiais, em escalas de tempo desvinculadas dos planos de historicidade originais. A ficção científica antecipou muito desse movimento que estamos assistindo.


Em San Junipero (2016), quarto episódio da terceira temporada da série britânica Black Mirror, a vida eterna é atingida através do upload da memória dos mortos para servidores que emulam a existência humana em uma cidade digital, perpetuamente presa na década de 1980. Fonte: Netflix, 2016.
Não havendo controle sobre os nossos dados também passamos, de uma forma ou de outra, a não ter soberania sobre os nossos corpos. Então, o manifesto pela soberania se orienta através de um viés pedagógico: imaginar uma sociedade que seja capaz de ensinar as pessoas a organizares, (auto)gerirem, os seus próprios dados. Uma sociedade, avançando na argumentação, que seja capaz de manipular os seus dados, partes inalienáveis da sua experiência encrustada no mundo da vida, em perspectiva de armazenamento responsável. São sinalizações de modos protetivos em caráter existencial, não apenas gestos de afirmação política; mesmo que a finalidade última seja não outra que a do bem comum. Um pacto soberano em todos os sentidos.
É muito importante, sendo isso um exercício de educação cidadã 5.0, a ideia da proteção do dado pessoal. Nesse caso, a principal lição que fica, a qual tentamos popularizar de maneira francamente formativa, é a de que cada cidadã e cidadão não ceda gratuitamente os seus dados; não num sentido economicista – que fique bem claro. Somente pela educação digital, por pedagogia formativa e cidadã, teremos condições de concorrer com os conglomerados informacionais da era do capitalismo de dados.
Outra questão importante e correlata: para a existência desse pacto soberano em prol dos dados o papel das pessoas deve ser atravessado pela noção de cooperação. Precisamos, pois, de meios de nos fazer existir no mundo digital. Como assim? É fazer com que os dados permaneçam conosco. É a capacidade de termos os nossos próprios arquivos. De ter condições educativas para retirarmos proveito da potência que esses dados possuem. Talvez uma ideia interessante seja a de busca por formas educativas.

Imagem do projeto We feel fine (2006), de Jonathan Harris e Sep Kamvar, construindo uma visualização de sentimentos a partir de postagens começadas com “Eu me sinto” ou “Estou me sentindo” nas plataformas LiveJournal, MSN Spaces, MySpace, Blogger, Flickr, Technorati, Feedster, Ice Rocket, e Google. Fonte: We feel fine, 2006.
Fazer com que os dados sejam produzidos de uma maneira que as suas bases sejam, por exemplo, interconectáveis, interoperativas, possibilitando cruzamentos informacionais capazes de construir uma realidade desejável ao bem comum. Podemos, a partir desse manifesto, extrair uma potência coletiva de aprendizado. Porque colocamos, de um jeito ou de outro, dentro de uma força um poder que vive e que opera a partir da fragmentação das cidades, mas que, se continuarmos na situação que nos encontramos, não conseguimos, minimamente, controlar.
A nossa perspectiva é, como já foi apontado, aquela que promove os dados em sentido existencial. Por isso a ideia geral do manifesto pela soberania de dados é a de que eles devem voltar para as pessoas, posto que partes indissociáveis das suas existências, que queremos autênticas e afirmativas. E o papel do Estado necessita, nessa direção, ser o de renovador tutelar junto à proteção dos dados, dotando as pessoas de condições educativas, além de infraestruturais, para retirar a potência dos dados.
Então, o papel ativo do Estado é, também, como controlador responsável dos dados e de tudo aquilo que tem a ver com serviços, que não é outra coisa do que estabelecer o bem-estar, a qualidade de vida, das pessoas. Por isso esse ente necessita estabelecer políticas claras para (salva)guardar os seus dados responsavelmente, os protegendo dos interesses capitalistas das corporações; especialmente aquelas que agem sob o signo da desonestidade; ou economicismo puro.
E isso não tem, necessariamente, a ver tão somente com a transparência. Porque devemos, enquanto imperativo ético, nos portar eticamente, mostrando, em todas as escalas possíveis, o que temos. O dado, a informação e, então, o documento, possuem uma dimensão civil, mas o dado em grande escala não é. Cumpre falar até mesmo em volumetria, em escalas, jogos de escalas; na multiplicidade dos dados. Dependendo dessa paisagem, portanto, o Estado necessita ir compartilhando esses dados partindo de uma responsabilidade eticamente conduzida, avaliando, assim, a conveniência que interessa ao bem público. E isso envolve, logicamente, meios possíveis, ou seja, infraestrutura. Então para que isso ocorra o Estado necessita do compartilhamento eticamente conduzido, produzindo dados com compromisso de interoperabilidade entre dados. O Estado deve evitar certo estado de miopia, ajustando as suas lentes soberanamente.
Hoje em dia se contrata, podemos argumentar isso, a fabricação de bases de dados, o que pode retirar a tutela cidadã sobre eles. O que é necessário ser feito, ante essa situação, é o estabelecimento de regras compartilhadas e interativas com o interesse do bem comum. Por isso o Estado deve aparecer como mediador. Obviamente que isso demanda tempo, investimento e, sobretudo, educação, até mesmo para a produção científica. Seria o caso, por exemplo, de refletir acerca desses gigantes flancos científicos que compartilham signos comuns. Quais os seus padrões de curadoria? Quais são os critérios organizacionais? Não se pode, pela paisagem desafiadora que nos é apresentada, estabelecer, construir ou fabricar bases de dados atomizadas, individualizadas. Elas necessitam manter, em última medida, compromissos com políticas de compartilhamento e de reuso, o que implica operabilidade, interoperabilidade, plurioperabilidade e transoperabilidade.
Esse ideal, utópico pois imaginável, imaginável posto que realizável, deve ser direcionado para a cidadã e para o cidadão. Isso não é apenas um ideal de Estado, mas, mesmo, de sociedade civil. De sociedade civil em modo cooperativo e democrático, ou seja, soberano. As comunidades devem ser envolvidas, sendo elas impelidas a compilar adequadamente os seus dados de uma maneira que faça sentido e que a leve a entender o significado público, formativo, cidadão, da noção de compartilhamento.
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