Manifesto pela Soberania de Dados - II
- tnicodemo
- 25 de nov. de 2024
- 6 min de leitura
Um princípio ético para uma sociedade mais justa baseada numa visão soberana dos seus dados

Ilustração do frontispício do livro Leviatã (1651), de Thomas Hobbes, ilustrado por Abraham Bosse. Fonte: Wikimedia Commons, 2022..
I. Introdução: O Contexto da Crise
O mundo contemporâneo é caracterizado por um fluxo incessante de dados, impulsionado pelo avanço tecnológico e pela proliferação de dispositivos digitais interconectados. Esse ambiente hiperconectado cria oportunidades sem precedentes, mas também levanta preocupações significativas relacionadas à privacidade, à segurança e ao controle dos dados. A cada dia que passa, mais dados são coletados, processados e compartilhados por entidades poderosas, governos e grandes corporações. Esse cenário desencadeia uma crise de soberania de dados, em que indivíduos e comunidades perdem o controle sobre sua própria informação, tornando-se meros fornecedores passivos de dados para objetivos muitas vezes opacos, e muitas vezes não alinhados aos interesses individuais. A crescente conscientização pública sobre a importância da privacidade e da segurança dos dados impulsiona esta demanda por maior autodeterminação (MELLO, 2010).
Este manifesto defende a soberania de dados – o direito dos indivíduos e das comunidades de governar seus próprios dados – como princípio fundamental para uma sociedade justa e democrática. Reconhecendo que a capacidade de gerenciar dados pessoais é inerente à autonomia individual e coletiva, este documento explora a natureza da crise de soberania de dados, as soluções propostas e os desafios para a implementação eficaz da soberania de dados.
II. O Problema: O Estado de Exceção Digital
O paradigma atual, centrado na visão dos dados como mercadoria, permite que entidades poderosas colete, analisem e negociem dados sem o consentimento informado dos indivíduos, violando seus direitos e agravando as desigualdades sociais. A intensa utilização de algoritmos e de IA para o processamento de dados exacerba ainda mais esse problema. Este modelo leva à:
Perda de Autonomia: Os indivíduos não exercem o controle efetivo sobre seus dados, que são constantemente usados para fins que eles podem não aprovar, mesmo sem seu conhecimento ou consentimento explícito. A capacidade de decidir como seus dados são utilizados é essencial para a autonomia individual (AGAMBEN, 1995).
Aumento das Desigualdades: A concentração de dados nas mãos de grandes corporações e governos amplia a disparidade de poder, gerando desigualdades e injustiças. A concentração de informações cria vantagens para os que as detêm, enquanto os que não as possuem ficam em desvantagem (CASTELLS, 1999).
Erosão da Privacidade: A vigilância e o monitoramento constantes online prejudicam a privacidade pessoal, levando a manipulação e ao controle. A capacidade de manter a privacidade é essencial para a autonomia individual (FOUCAULT, 1987).
Amnésia Histórica: A destruição ou alteração sistemática de dados prejudica a capacidade de compreensão e aprendizado do passado, potencialmente resultando em injustiças e na repetição de erros anteriores. O registro e a preservação da história através de documentos são fundamentais para a memória coletiva e para a justiça.
A destruição sistemática de documentos históricos, como ocorreu na Alemanha Nazista, ilustra os riscos potenciais de não se garantir a integridade das informações. A falta de transparência e de mecanismos de responsabilização permite que os poderosos usem os dados para seus próprios fins, muitas vezes sem o conhecimento ou o consentimento dos indivíduos.
III. A Solução: Soberania de Dados como Direito Fundamental
Este manifesto propõe a soberania de dados como um direito fundamental, assegurando aos indivíduos e comunidades o controle sobre seus dados pessoais. Esse direito requer:
Consentimento Informado: Total transparência sobre como os dados são coletados, usados e compartilhados. Os indivíduos devem ter o poder de consentir ou recusar a utilização de seus dados.
Controle de Dados: Os indivíduos e as comunidades devem possuir mecanismos para controlar seus dados, garantindo sua segurança, sua privacidade e sua integridade. Isto inclui o direito de acesso, correção, exclusão e portabilidade de dados.
Governança Democrática: Mecanismos de supervisão pública sobre a forma como os dados são utilizados por atores públicos e privados devem ser implementados. A participação pública é essencial para assegurar a responsabilização e a justiça.
Proteção Contra Manipulação e Preconceito: Os sistemas de dados devem ser projetados e implementados para prevenir a manipulação, o preconceito e as práticas discriminatórias. Isto inclui a solução de problemas de preconceito algorítmico e a garantia de justiça e equidade.
Arquivamento e Preservação Éticos: Os sistemas de arquivamento e preservação de dados devem priorizar as considerações éticas relacionadas aos direitos dos dados. A preservação de dados deve ser executada de forma a respeitar os princípios da soberania de dados.
O processo de arquivamento, desde a sua criação, tem demonstrado a importância da preservação e da memória; reconhecendo que o registro do passado é fundamental para a construção e para a legitimação do presente (RICOUER, 2007). Os documentos, como rastros históricos, são as evidências que permitem escrutínio das ações dos governos e que asseguram sua responsabilização.
A preservação e a disponibilização de informação, sejam através de formatos analógicos ou digitais, são essenciais para a transparência e para a accountability. O acesso à informação deve ser garantido por meio de mecanismos que promovam a transparência e a explicabilidade.
IV. Implementando a Soberania de Dados: Uma Abordagem Multifacetada
Implementar a soberania de dados exige uma abordagem multifacetada e contínua que envolva legislação, inovação tecnológica, ações educativas e cooperação internacional.
Legislação e Regulamentação: Fortalecer as estruturas jurídicas existentes, como a LGPD no Brasil e a GDPR na Europa, é crucial para garantir o consentimento informado, o controle de dados e uma governança de dados responsável. É preciso levar em conta a complexidade do ambiente digital e as nuances da privacidade.
Inovação Tecnológica: Promover o desenvolvimento de tecnologias que promovam a privacidade e sistemas descentralizados para gestão de dados. Soluções como blockchain, aprendizagem federada e privacidade diferencial podem fortalecer a soberania de dados.
Iniciativas Educativas: A educação pública para a conscientização e a compreensão dos direitos e responsabilidades relacionadas aos dados é fundamental. Os cidadãos precisam desenvolver a capacidade de exercerem seus direitos e de analisarem criticamente os sistemas baseados em dados.
Cooperação Internacional: A cooperação global é essencial, pois os dados fluem livremente através das fronteiras. A cooperação entre países e organizações internacionais contribuirá para a definição de padrões comuns e a promoção das melhores práticas.
V. Desafios e Oportunidades
A conquista da soberania de dados enfrenta desafios significativos, incluindo:
Fluxos Transfronteiriços de Dados: A mobilidade livre de dados dificulta a aplicação eficaz de leis e regulamentos nacionais.
Complexidade Tecnológica: A crescente utilização da inteligência artificial e dos algoritmos torna difícil a compreensão e a mitigação de riscos e de vieses.
Desequilíbrio de Poder: Grandes empresas e governos detêm vantagens significativas no ecossistema de dados, dificultando a ação dos indivíduos e das comunidades para a proteção de seus direitos.
Falta de Conscientização: Muitas pessoas não estão cientes de seus direitos e responsabilidades em relação aos dados, dificultando a defesa eficaz da soberania de dados.
No entanto, oportunidades significativas também existem:
Conscientização Pública: A conscientização sobre privacidade e segurança de dados está crescendo, resultando em uma maior demanda por mecanismos de proteção.
Avanços Tecnológicos: Novas tecnologias para melhorar a privacidade e o controle de dados estão surgindo e evoluindo.
Cooperação Internacional: A cooperação entre países está aumentando, o que contribui para o desenvolvimento de padrões e de regulamentos globais para proteção de dados.
VI. Conclusão: O Caminho para a Justiça Digital
A soberania de dados não é apenas um desafio tecnológico ou legal, é um princípio ético e político fundamental para a construção de uma sociedade mais justa, equitativa e democrática. A sua conquista requer um esforço colaborativo entre governos, empresas privadas, sociedade civil e indivíduos. Ao abraçar a soberania de dados, podemos criar um futuro em que os dados fortaleçam, em vez de enfraquecerem, indivíduos e comunidades. A crescente conscientização pública sobre os riscos da manipulação de dados e o desenvolvimento de novas tecnologias que garantam a privacidade e o controle individualizado são fatores essenciais para esse processo. A proteção da memória e a capacidade de reconstruir a história através de documentos autênticos e confiáveis contribuem para uma sociedade mais justa e responsável. É preciso um novo pacto social e um conjunto de novas práticas para enfrentar as questões éticas e legais da era digital, visando a uma sociedade mais justa e equitativa.
Nota técnica
O texto resume meus argumentos a partir da obra ainda em elaboração Soberania de Dados. Alguns textos preliminares a respeito do assunto já foram publicados e podem ser encontrados aqui;
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: notas sobre a política. Rio de Janeiro: N-1 edições, 2015.
BARNES, Susan. A digital intimacy. New York: Oxford University
NICODEMO, Thiago Lima. Soberania de Dados. Manuscrito em fase de publicação.
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